ENTRE NÓS


Marina Silva*


E chega novamente aquela expectativa própria dessa época, em que se misturam uma correria de fim de ano com uma típica calmaria pela che­gada de um novo ano.
Correria que invade a alma, junto com o turbilhão de coi­sas que recaem sobre as pes­soas. Problemas pendentes, não resolvidos, chegam a de­zembro com um prazo final.
Questões não respondidas reaparecem e insistem em nos acompanhar após as festas. E todo o trabalho realizado no decorrer do ano também se apresenta como interrogação, a buscar validação, chancela, avaliação criteriosa... temos que fechar as contas.
A calmaria vem com a con­fortante promessa de que tu­do poderá mudar para melhor no ano que chega. Sonhos não realizados comparecem na es­perançosa bandeja dos      com­promissos futuros: mais tem­po para viver a vida, em lugar de ser vivido por ela. Mudar antes de ser mudado. Renunciar mais às certezas que ensoberbecem a alma, antes de ser estagnado por elas.
O que se fez e o que não se fez, muitas vezes, vira fardo nessa época tão intensa. Alí­vio e aflição, já que o ano ter­mina e chegamos lá, e um pou­co de chateação pelas coisas que ficam para trás sem, de fa­to, ficarem. Abraços não da­dos agora apertam o coração, e partimos a nos acotovelar em shoppings e em mercados pa­ra lá encontrar os presentes que dirão a amigos e parentes que, na verdade, os amamos e os queremos por perto.
Pensamos também nas pes­soas que perdemos, nos ama­dos que se foram e não pode­remos mais abraçar. Que sau­dade de nosso grande Chico Mendes, que foi arrancado de nós há 23 anos, e da partida precoce de André Urani.
Na espécie de tsunami emo­cional que costuma acometer as pessoas nas festas de fim de ano, há algo que, lá, meio so­terrado por preocupações e ansiedades e pelo consumis- mo desenfreado no qual se transformou o Natal, pode dar sentido às coisas e ser o fio condutor a nos levar de uma etapa a outra, fechando as contas com o ano que passa e abrindo o livro para o que vem.
Para mim, é o que dá senti­do às festas. Vem com a sau­dação do anjo a Maria, como lemos no Evangelho de Lucas: “Alegra-te”. É que chega a boa-nova, de grande alegria.
Como diz Hannah Arendt, “esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenha si­do expressa de modo tão su­cinto e glorioso como nas bre­ves palavras com as quais os Evangelhos anunciam a ‘boa-nova’: “Nasceu uma criança entre nós”. É a alegria da fé em nossa eterna capacidade de começar.
Que o espaço entre pensar e agir, findar e começar, brin­car e trabalhar, e outras coisas que só se realizam entre nós e os mundos que nos habitam, possa ser sempre ocupado pela criança que nasce e renasce em cada um de nós.

*Transcrito da Folha de São Paulo